Evento promoveu discussão sobre política de drogas, e problematizou voto de Alexandre de Moraes
Uma pesquisa recente do Datafolha indica que 72% da população brasileira é contra a legalização do uso recreativo da maconha no país, enquanto o uso medicinal é apoiado por 76% dos indivíduos. Apesar da opinião pública desfavorável, é possível que a descriminalização de usuários de cannabis seja aprovada no país: é o que indica o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659, que está em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) . Em evento realizado pelo Grupo Direito e Políticas Públicas (GDPP) da USP, em 7 de novembro, especialistas defenderam uma política de drogas baseada em evidências, considerando aspectos da saúde e segurança pública.
O evento “Por uma política de Drogas Justa no Brasil” foi organizado em parceria com a Plataforma Justa e com a Rede Liberdade, e aconteceu na Faculdade de Direito da USP. Diogo R. Coutinho, professor da USP e pesquisador do GDPP, coordenou a atividade, juntamente com Beto Vasconcelos, advogado, ex-subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República e presidente do Conselho da Rede Liberdade.
“É preciso regulamentar uso de maconha a partir de modelo dimensional”
Camila Magalhães Silveira, médica psiquiatra e pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da USP, iniciou o debate. Ela apresentou a necessidade de regulamentar o uso da cannabis, assim como há regulamentação para uso de álcool – que determina idade mínima e outras condições de uso, por exemplo. Magalhães acredita que a ideia é partir de um modelo dimensional do uso, considerando fatores sociais – como cultura, contexto em que o usuário vive, e legislação; aspectos demográficos, como idade, gênero e renda; e individuais, que seria a quantidade utilizada, o padrão de uso, e o tipo da substância.
“Não devemos pensar a saúde mental de forma isolada dos atravessamentos sociais. Os estudos indicam que, no Brasil, a prevalência de transtornos mentais é alta especialmente nas periferias, onde as pessoas são condicionadas a formas de viver que trazem sofrimento, em situação de privação social”, afirmou a psiquiatra.
É também no contexto periférico que prevalece o uso mais complexo de drogas, onde as pessoas têm mais problemas associados à prática – como dependência e mistura de diferentes substâncias, sendo o álcool a mais consumida neste cenário de uso pesado. A maioria dos usuários de drogas no país, no entanto, faz uso leve e episódico, segundo Magalhães.
Voto de Alexandre de Moraes reconhece racismo institucional, mas não soluciona
Cristiano Maronna, advogado, diretor da Plataforma Justa e autor do livro “Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade”, analisou diretamente o processo no STF, especialmente o voto de Alexandre de Moraes, que teve adesão de mais quatro ministros, por enquanto.
Ele considera que, apesar de Moraes admitir o super encarceramento associado à guerra às drogas, e reconhecer o racismo institucional dentro do sistema judiciário, “não endereçou solução para essa questão”. Segundo o advogado, a principal problemática, da perspectiva jurídica, é a descriminalização apenas da maconha, desconsiderando o uso das demais substâncias.
Além disso, criticou fatores apontados por Moraes como determinantes para definir se uma pessoa, ao ser flagrada com drogas, é usuária ou traficante, tais como: a forma de condicionamento da substância, a diversidade de entorpecentes, e a apreensão de outros instrumentos, como balança, caderno de anotações e celulares com contatos de supostos compradores.
“Se são 5 gramas de cocaína, divididas em 5 papelotes, não faz com que a pessoa seja traficante – mas pelo voto de Alexandre [de Moraes], a forma como está condicionada implica em tráfico.
Se a pessoa é flagrada com maconha e cocaína, também não significa que trafica. E vários usuários têm balança, por exemplo, para dosar o próprio uso, controlar a quantidade que está comprando. Às vezes têm balança em casa para cozinhar”, explicou Maronna. O voto de Moraes também atesta a invasão de celulares por agentes policiais, sem determinação judicial, o que viola direitos.
Maronna defende que o STF edite súmulas vinculantes, por ofício, para sanar controvérsias: “é importante pressupor a finalidade diversa do consumo (em vez de tráfico), e também declarar que os depoimentos dos policiais e as provas apreendidas na hora do flagrante por si só não são suficientes para caracterizar tráfico, é preciso prévia autorização judicial para invasão de celular, e prova pericial em cadernos, balanças, celulares e outros objetos, também é preciso ordem judicial para busca e apreensão domiciliar”, explicou.
Para ele, é indispensável que a pessoa tenha o direito de não produzir prova contra si mesma (avido de Miranda), e permanecer em silêncio, durante a abordagem policial. Para garantir o controle da legalidade, é preciso câmeras, com captação de áudio e vídeo, como condição para a ação policial.
“Ninguém deve ser torturado, encarcerado e morto por conta do uso de substâncias”
Michael Dantas – advogado da Rede Reforma, especializado na Lei de Drogas – pontuou que o sistema de não uso de drogas, de abstinência total, nunca foi possível na história humana, e que a proibição da maconha no Brasil tem origem racista, no contexto escravocrata. Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibiu a venda e o uso do “pito do pango”, decretando que pessoas escravizadas usuárias da maconha seriam condenadas a pelo menos três dias de cadeia.
Ele diz que a Lei de Drogas de 2006 contribui diretamente para o superencarceramento, não diminui o uso de substâncias, tampouco a questão de segurança pública: “Para pensar na política de drogas que queremos construir, temos que ouvir as pessoas diretamente atingidas, o corpo alvo: mulheres negras – as que mais choram por seus filhos assassinados – e homens negros, que são executados. Antes da lei de 2006, a quantidade de pessoas presas por tráfico era menos de 30%, agora passa dos 40%”, disse Dantas.
O advogado também refletiu sobre o dinheiro público investido nas forças policiais, milhões de reais que poderiam ser empregados em moradia, saneamento básico e saúde pública: “a política de guerra às drogas atravessa a todos, independente de onde você esteja. Devemos construir uma nova política, que parte da premissa de que ninguém vai ser torturado, encarcerado e morto por conta do uso de substâncias. Sejamos agentes transformadores: isso acontece em casa, na escola, isso acontece em todos os espaços. O direito sempre foi dúbio: reforça os estigmas, pode ser racista, mas também pode promover mudanças”, concluiu.
Em 24 de agosto, o ministro André Mendonça pediu vista do processo em trâmite no STF, mas a votação deve retomar ainda em novembro.
O evento do GDPP foi transmitido ao vivo pela Associação de Apoio e Pesquisa Cannabis Cura Apoio (ACCURA), e a gravação está disponível no instagram da entidade.
