Confira a cobertura completa do evento
Na última semana de agosto (26/8), dezenas de pessoas se reuniram na Faculdade de Direito da USP para participar do seminário internacional “A Regulação dos Sistemas Alimentares”, promovido pelo Grupo Direito e Políticas Públicas (GDPP). O evento contou com a presença de pesquisadores, estudantes, representantes do governo e da sociedade civil, que se dedicaram a discutir os aspectos jurídicos da segurança alimentar e nutricional no Brasil, com contribuições internacionais.
+ Confira as fotos do evento, no Flickr do GDPP
Na parte da manhã, os presentes assistiram a mesas sobre a regulação da indústria de alimentos no Brasil e em outros países, com nuances sobre indústrias de commodities e conflito de interesses: clique para ler mais. Confira a cobertura da segunda etapa do evento, abaixo.
Monotonia alimentar
75% da oferta calórica global vêm de apenas seis produtos: milho, trigo, arroz, soja, batata e açúcar. Ricardo Abramovay, pesquisador da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP, conceitualiza esses dados como monotonia alimentar – um fenômeno que resulta da concentração da produção agrícola e animal em um número muito limitado de produtos, e se caracteriza pela falta de diversidade nas espécies cultivadas e consumidas.
Abramovay participou da mesa “Direito, economia política e concorrência no mercado de alimentos”, e destacou que a monotonia alimentar é uma consequência das tecnologias implementadas a partir dos anos 1960, com a justificativa de combater a fome no mundo – como as sementes de alta produtividade, que demandam o uso intensivo de fertilizantes químicos e, para evitar ataques de pragas, de agrotóxicos em grande escala. A indústria de alimentos ultraprocessados reforça a monotonia alimentar.
No Brasil, por exemplo, a soja ocupa 65% da superfície agrícola e consome 51% dos créditos oficiais. Em escala global, 70% de toda a superfície agrícola é destinada à produção animal. Para o pesquisador, essa concentração não é apenas um problema econômico, mas também representa uma ameaça à segurança alimentar global, especialmente diante das mudanças climáticas.
“As produções altamente especializadas, concentradas em poucos locais, estão cada vez mais vulneráveis a eventos climáticos extremos, o que pode aumentar os custos com seguros e comprometer a sustentabilidade do sistema. Em dezembro de 2023, o Fórum Econômico Mundial lançou um relatório com uma crítica contundente aos alimentos ultraprocessados, e eu nunca vi o Fórum Econômico Mundial com uma posição tão incisiva contra um setor que compõe uma parte fundamental dos seus membros”, mencionou o pesquisador.
Laís Amaral, pesquisadora do IDEC, também enfatizou a importância de diversificar a cadeia alimentar, como forma de combater a monotonia na produção e, consequentemente, na alimentação, e sugeriu o Guia Alimentar para a População Brasileira como um caminho possível: “O Guia traz uma abordagem fundamental para lidar com a alimentação de forma mais integrada e sustentável, refletindo a importância de considerar a biodiversidade e o clima nas diretrizes alimentares”.
Ela também comentou a mudança na disponibilidade e no custo dos alimentos in natura, mencionando que o acesso a esses alimentos se tornou mais difícil e mais caro, principalmente após a pandemia de Covid-19, e destacou a questão dos desertos alimentares, áreas onde o acesso a alimentos in natura e minimamente processados é limitado.
Monopólio do agronegócio é sintoma do sistema econômico e político
Sob a perspectiva do direito e da economia política, Anna Chadwick, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Glasgow (Escócia), acrescentou que a monopolização da agricultura por grandes empresas do agronegócio é uma das principais ameaças aos sistemas alimentares sustentáveis, e que aprofunda as iniquidades sociais e de saúde.
“Essas empresas controlam cada vez mais aspectos das cadeias globais, da fazenda ao prato. Promovem modelos industrializados de produção de alimentos que têm impactos catastróficos no meio ambiente, incluindo o esgotamento dos solos e a exacerbação das mudanças climáticas, e também estão exercendo formas de controle que reduzem a renda dos agricultores enquanto tornam alguns produtos alimentícios mais caros e apenas mais lucrativos”, disse.
Para ela, esse domínio das empresas globais do agronegócio é sintomático do tipo de economia política que temos – “Alimentos, assim como terras e trabalho, são tratados antes e acima de tudo como mercadorias. Esses problemas estão surgindo porque a vida e a saúde humana estão efetivamente subordinadas às lógicas de acumulação neste sistema”. Mais que pensar em regular, é preciso mudar a perspectiva da lei – predominantemente uma ferramenta dos interesses dos mais poderosos – para uma estrutura ideológica que legitima a distribuição desse poder em uma ordem social mais ampla.
Defesa da concorrência
Carolina Saito, Coordenadora-Geral da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade) e pesquisadora do GDPP, explicou o conceito de defesa da concorrência – um conjunto de políticas e medidas adotadas para garantir que os mercados funcionem de forma justa e eficiente, impedindo que empresas adotem práticas anticompetitivas que prejudiquem consumidores e outros concorrentes. O CADE atua em três grandes pilares: controle de concentrações, análise de condutas anticompetitivas e promoção da concorrência.
O tema da concorrência ganhou relevância em áreas como mercados digitais, mas Saito destacou que o setor agroalimentar, que passou a ser discutido anteriormente, está voltando às pautas devido à sua importância. Ela enfatizou que o Brasil tem um papel significativo nesses debates devido à relevância de seu setor agrícola globalmente. Também mencionou que, embora a defesa da concorrência seja crucial, é importante reconhecer as limitações dessa atuação: “Para mercados mais sensíveis, a gente precisa pensar em ferramentas específicas para olhar o impacto real, não dá para olhar o mercado de alimentos como olhamos o mercado de pneu, por exemplo”.
Já Vitória Oliveira, pesquisadora do GDPP, trouxe uma reflexão sobre o papel histórico da defesa da concorrência no Brasil. Ela explicou que, no passado, a economia popular no Brasil buscava garantir o abastecimento de alimentos e manter os preços acessíveis, especialmente em setores essenciais como a alimentação. “O abandono dessa economia popular não é trivial”, afirmou.
Ela apresentou discussões preliminares a partir de análise do GDPP, que observou aproximadamente 500 casos de operações no setor alimentar entre 2016 e 2022. A pesquisa ajudou a ilustrar como a análise das aprovações de fusões e aquisições em larga escala pode revelar a concentração de poder econômico e a monotonia tanto na produção quanto na alimentação: “Há concentração econômica nas cadeias globais de valor do setor alimentos, e também um ‘descontrole’ nas estruturas do CADE, há aprovações sem análises robustas do setor”.
Políticas públicas e segurança alimentar e nutricional
A última mesa do seminário, sobre políticas públicas e segurança alimentar e nutricional, contou com a presença de Valéria Burity, Secretária Extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), que iniciou sua fala explicando que a segurança alimentar e nutricional vai além do simples acesso aos alimentos: “A nossa legislação define a segurança alimentar e nutricional como uma estratégia para garantir o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e suficientes, respeitando a diversidade cultural e promovendo a sustentabilidade social, ambiental e econômica”.
A representante do MDS ressaltou que, apesar de um grande retrocesso nas políticas públicas a partir de 2016, houve um retorno efetivo das políticas de combate à fome em 2023, resultando na redução da fome no país. Ela também abordou os desafios atuais enfrentados pela política de segurança alimentar, como a estagnação na produção de alimentos, desigualdades no acesso, e o impacto das mudanças climáticas. “Alguns desafios que precisam ser superados incluem a diminuição da área plantada, desigualdade no acesso aos alimentos saudáveis e a persistência de desertos alimentares.”
Carla Bueno, representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ponderou que uma das perguntas que precisam ser respondidas é como não mais voltar para o Mapa da Fome. “Soberania alimentar quer dizer que a gente precisa acessar os alimentos saudáveis, nas quantidades adequadas, e ter a condição de escolher o quê não comer. Essa discussão toda também é sobre qual modelo de produção adotar, tanto no campo quanto na indústria”.
Ela também pontuou que o tema da regulação “perturba” os movimentos sociais, porque muitas vezes a legislação, incluindo normas sanitárias e regulamentações para a produção na agricultura familiar, pode ser desafiadora e até mesmo opressiva para os pequenos produtores.
Alimentação Escolar
A convidada internacional da mesa foi Sameera Mahomedy (Universidade de Witwatersrand, África do Sul), que apresentou o Programa Nacional de Nutrição Escolar da África do Sul (NSNP). “A ideia é focar nas crianças de regiões menos abastadas, e o programa deve oferecer refeições incluindo proteínas, carboidratos e gorduras – pelo menos 30% da necessidade calórica diária recomendada. Mas, basicamente, o principal objetivo é ajudar essas crianças a atingir suas necessidades nutricionais, porque, quando você tem fome, não consegue frequentar a escola normalmente”, contou.
Segundo Mahomedy, o NSNP apresenta lacunas de cobertura e consistência, e tem uma implementação desigual entre as províncias. Também há questões sobre a qualidade nutricional e a variabilidade na qualidade das refeições, bem como restrições orçamentárias que afetam o escopo e a qualidade do programa.
Da perspectiva da alimentação escolar no Brasil, a pesquisadora Ana Clara Duran, do Nupens/USP, apresentou o Programa Nacional pela Alimentação Escolar (PNAE).O conceito do programa foi criado em 1955, com a ideia de atender todos os estudantes das escolas públicas brasileiras, cerca de 40 milhões de estudantes em todos os municípios.
“Principalmente após a Constituição de 1988, houve muitas mudanças no programa. Uma resolução de 2020 determinou que os recursos federais para o programa devem ser usados diretamente na compra de alimentos da agricultura familiar. Isso destacou o Brasil como um líder global em inovação legal nesse campo”, contou Duran.
Para ela, o Brasil é citado como um caso de sucesso, mas também enfrenta desafios, porque 40% dos municípios não atendem às novas restrições. “Estamos levantando informações sobre os alimentos comprados e a aplicação das regras. A importância do programa é clara, mas existem desafios em sua implementação, como restrições nos gastos e variabilidade na qualidade dos alimentos fornecidos”, pontuou a pesquisadora. Os dados indicam que a aplicação das regras varia entre regiões”.
Marina Andrade, mediadora da mesa e pesquisadora do GDPP, apresentou o trabalho do grupo na agenda do PNAE: “Estamos analisando resoluções do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), projetos de lei do Congresso Nacional, além de decisões do Judiciário. Nosso objetivo é perceber possíveis descaracterizações do Programa – como a universalização colocada em cheque, interferência nos cardápios – e possíveis avanços, como a expansão da participação da agricultura familiar e produtos agroecológicos”, afirmou.
Confira a cobertura da primeira parte do evento, e assista à gravação: