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Regulação como impulso para as políticas públicas
Regulação como impulso para as políticas públicas

Confira como foi o seminário internacional organizado pelo GDPP, em 26/8

Dezenas de pessoas estiveram reunidas na Faculdade de Direito da USP, na última semana de agosto (26/8), para o seminário internacional “A Regulação dos Sistemas Alimentares”, promovido pelo Grupo Direito e Políticas Públicas (GDPP). O evento reuniu pesquisadores, estudantes, representantes do governo e da sociedade civil para debater os aspectos jurídicos da segurança alimentar e nutricional no Brasil – com perspectivas de outros países. 

Na mesa de abertura, Diogo Coutinho, professor da Faculdade de Direito e coordenador do GDPP, explicou o conceito de “regulação” que orienta todo o debate, afirmando que é importante enxergar a ação reguladora do Estado como um vetor de políticas públicas. “A regulação dos sistemas alimentares não é somente algo técnico, que se faz em nome da correção de falhas de mercado como usualmente se justifica a ação reguladora do Estado. Os direitos, mesmo os constitucionalmente garantidos, precisam  precisam de arcabouço de implementação, e a regulação é uma dessas ferramentas”. 

Além de Coutinho, abriram o seminário Andre Degenszajn, diretor-presidente do Instituto Ibirapitanga, e  Natasha Lauletta, consultora do O’Neill Institute for National and Global Health Law da Universidade de Georgetown. 

+ Confira as fotos do evento, no Flickr do GDPP

A interdisciplinaridade do evento – que reuniu atores do Direito,e da Alimentação e Nutrição em Saúde – foi saudada por Degenszajn: “Um dos desafios que a gente tem hoje é fazer que o debate alimentar se expanda por outros campos da academia – para além da nutrição – e também da sociedade. É improvável que as soluções venham da indústria,  é injusto responsabilizar os indivíduos. As transformações necessárias para enfrentar a crise climática virão com a regulação dos sistemas alimentares”. 

Já Lauletta reforçou que pensar a saúde pública é indissociável da alimentação saudável e adequada, e que é preciso entender como o Direito e suas ferramentas podem contribuir para sistemas alimentares mais saudáveis. “O Brasil é uma potência na área de sistemas alimentares, e esse evento é uma oportunidade de aprofundar as trocas com outros países. O global pode aprender um pouco com as experiências brasileiras”. 

Natasha Lauletta | Foto: Kio Lima /GDPP

Conflito de interesses

A primeira atividade do dia foi uma palestra com o pesquisador Jeff Collin, da Universidade de Edimburgo, que trouxe perspectivas internacionais sobre a regulação dos sistemas alimentares e indústrias de commodities, como ele se refere à indústria do tabaco, álcool, agrotóxicos e ultraprocessados, por exemplo. “

O pesquisador apresentou o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, como um exemplo global para pensar sistemas alimentares, já que apresenta uma regra de ouro para evitar consumo de ultraprocessados  além de ser baseado em princípios de autonomia dos povos, famílias e comunidades, proteger as dietas tradicionais e garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável. “Tudo o que aprendi sobre perspectivas internacionais do sistemas alimentares, aprendi com pessoas  que estão aqui neste espaço”, saudou. 

Ele defendeu que o conflito de interesses é pano de fundo para todos os determinantes comerciais da saúde, e que pode acontecer em âmbito individual – quando pesquisadores aceitam financiamento para pesquisas enviesadas, a fim de subsidiar as indústrias de commodities – ou institucionais. Citou como exemplo contradições da Organização Mundial da Saúde, que, na pandemia de Covid-19, aceitou e parabenizou a Nestlé por doações; ou uma parceria da  Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) com a CropLife, que atua no mercado de agrotóxicos: “É preciso minimizar o envolvimento da indústria na formulação de políticas públicas, criar políticas de conflito de interesses, e lobby, garantir a transparência” afirmou.

Jeff Collin | Foto: Kio Lima/ GDPP

Regulação da indústria de alimentos no Brasil

O Brasil é referência na produção de evidências sobre ultraprocessados – o termo, inclusive, foi cunhado por pesquisadores brasileiros, quando o Nupens/USP desenvolveu a classificação Nova de alimentos. Mas, em âmbito da regulação, ainda há muito a ser feito. É o que atesta Carlos Monteiro, coordenador emérito do Nupens/USP:

 “O consumo desses alimentos interfere em todo nosso sistema biológico – causa efeitos mais óbvios, como obesidade, e doenças cardiovasculares e até outros a princípios inesperados,  como depressão. A  reformulação de ultraprocessados não é solução. A solução está em não consumir esses alimentos, ou reduzir drasticamente seu consumo. Para isso, além de aumentar o nível de compreensão dos consumidores sobre as consequências dos ultraprocessados, é preciso que haja regulação muito mais forte e eficaz que a necessária para outros tipos de alimentos”, pontuou.

Monteiro afirmou, ainda, que na América Latina esses alimentos já começaram a ser regulados – com a tributação de bebidas açucaradas no Chile, e a rotulagem de “lupa” no Brasil, por exemplo. Ele acredita que uma solução é regular ingredientes essenciais, para a indústria perder muitas das vantagens econômicas que têm – “se os países começarem a regular aditivos, a indústria vai ter que mudar completamente os seus negócios”.

O pesquisador participou da mesa “A Regulação da indústria de alimentos no Brasil”, ainda pela manhã do seminário, juntamente com Meiruze Freitas, Diretora da Segunda Diretoria da Anvisa, Nicole Foster (Universidade de West Indies, Barbados), Paula Johns (ACT Promoção da Saúde), com mediação de Mariana Levy (GDPP). 

O debate deve ser interdisciplinar

Foster contextualizou o público sobre como a pauta tem sido tratada na região caribenha: “Importamos a maior parte dos alimentos que consumimos, e muitos deles são ultraprocessados. Admiramos a América Latina, especialmente o Brasil e o Chile, que lideram o debate nessa área. Barbados, por exemplo, implementou uma tributação de 20% sobre bebidas açucaradas, o que já tem impactado o consumo desses produtos.O Brasil é um exemplo com seu Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), nós começamos a trabalhar agora com a eliminação de gorduras trans e ácidos graxos da alimentação escolar em nosso país”, explicou.

A pesquisadora reforçou a importância do evento acontecer na Faculdade de Direito da USP, argumentando que alimentação e nutrição são de interesse de toda a sociedade, e que é necessário engajamento significativo do direito e das ciências políticas para tratar a assimetria de poder e o conflito de interesses na área.  “Observamos o que acontece aqui no Brasil, em relação às regulações e leis que conseguiram aprovar, e acreditamos que impacta esse objetivo global relacionado à alimentação e nutrição”. 

Mariana Levy pontuou que esse debate interdisciplinar é uma das motivações do GDPP – e apresentou a pesquisa em andamento pelo grupo, “A regulação dos sistemas alimentares no Brasil”, que já analisou mais de mil normas jurídicas, entre portarias, resoluções e  instruções normativas, com foco na atuação do Executivo sobre os sistemas alimentares: “A gente pretende analisar o papel da regulação estatal durante 2016 e 2022, dessas normas que levantamos. Nossos temas são, especificamente, ações estatais sobre gordura trans, rotulagem e agrotóxicos”. 

Meiruze Freitas, Nicole Foster, Mariana Levy, Carlos Monteiro e Paula Johns | Foto: Kio Lima/GDPP

Já Meiruze Freitas explicou que a Anvisa tem uma agenda regulatória pública, feita com participação social , que define os temas que serão trabalhadas nos próximos anos – e que a área de alimentos é a mais tensionada (Além de alimentos, a Segunda Diretoria é responsável pela autorização de comercialização de medicamentos, produtos biológicos e terapias avançadas), só para 2024 – 2025 são 34 temas a serem regulados. 

“A regulação deve buscar atingir seu objetivo de proteção da saúde, sem, contudo, ser um entrave para o desenvolvimento e trazer gastos desnecessários para quem a implementa. Os atores-chave relacionados à regulação precisam conjuntamente qualificar o debate com evidências, transparência e conexão interna e externa com os debates internacionais”, explicou a servidora.

Paula Johns trouxe a perspectiva da sociedade civil – ela atua com advocacy – e comentou que a arquitetura do processo é equivocada: “A indústria não precisa provar nada – cria e coloca qualquer coisa no mercado. E aí o agente regulador, o Estado, tem a obrigação de provar, por exemplo, que as substâncias fazem mal, é uma inversão de ônus. No caso do tabaco, a gente conseguiu reverter um pouco essa lógica, e pelo menos problematizar a recomposição de custos – pensar em quanto a indústria tem custado para o SUS, por exemplo”.

A mesa foi transmitida ao vivo, e está gravada no Youtube do GDPP. Assista: