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Reforma Tributária: é preciso garantir o Imposto Seletivo como medida de saúde pública 
Reforma Tributária: é preciso garantir o Imposto Seletivo como medida de saúde pública 

GDPP e ACT Promoção da Saúde promoveram debate com especialistas e representante do Ministério da Fazenda, na USP

A Reforma Tributária, em discussão no Congresso Nacional, é uma oportunidade de criar um sistema tributário mais justo, que, juntamente com políticas públicas, garanta comida saudável e farta para a mesa de todos os brasileiros. A criação de um Imposto Seletivo (IS) para tributar bens e serviços danosos à saúde e ao meio ambiente, assim como a implementação da Cesta Básica Nacional com Alíquota Zero, está em disputa.  

Com o objetivo de debater este processo, o Grupo de Direito e Políticas Públicas (GDPP) da USP, em parceria com a ACT Promoção da Saúde, promoveu a mesa “Reforma tributária e promoção da saúde”, no dia 26 de setembro. O evento aconteceu na Faculdade de Direito da USP. 

Nunca foi tão caro consumir hortaliças no Brasil”

Rafael Claro, pesquisador da área de alimentação e nutrição em saúde e professor da UFMG, iniciou a conversa explicando que é necessário considerar a saúde coletiva ao determinar a precificação dos alimentos: não é uma questão só da economia ou do setor produtivo, e a  Reforma Tributária deve ser pensada também a partir dessa perspectiva. Em 2020, um estudo orientado pelo pesquisador já indicava que alimentos frescos – carnes, leite, ovos, frutas e hortaliças – custavam mais que os ultraprocessados, no Brasil. Por outro lado, grãos, como arroz e feijão, ainda eram mais econômicos. Comparando com dados atuais, o cenário evoluiu de forma negativa:

“O que a gente previa que aconteceria em 2026, já aconteceu em 2022. Os preços dos alimentos  empurram a população cada vez mais para uma alimentação não saudável. Nunca foi tão caro consumir hortaliças no Brasil. A indústria de ultraprocessados aprendeu a usar do lobby e dos buracos legislativos  para pagar menos impostos. Além disso, há um total abandono da implementação de facilidades fiscais que incentivem a produção e consumo de produtos agroecológicos e orgânicos”, pontuou. 

Segundo Claro, para traçar esse comparativo foi necessário desenvolver uma metodologia que quantificasse os valores a partir de equivalentes energéticos. Ou seja, ao comparar uma banana com um pacote de biscoitos, por exemplo, o cálculo que se faz é referente a quanto se paga por 1000 calorias de cada um desses itens. O biscoito é mais barato.

O que é o Imposto Seletivo (IS)? 

Rodrigo Orair, Diretor de Programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda,  explicou que o IS  sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente – como tabaco, álcool, combustíveis fósseis – é a tendência tributária global do século XXI, assim como a instituição do Imposto de Renda foi uma das grandes reformas tributárias no século XX. A instituição de um IS na Constituição Federal, com a Reforma Tributária, é um avanço, segundo o economista. 

“O IS vai substituir a sopa de letrinhas – ICMS, Cofins, PIS etc. É necessário criar um sistema moderno, instituir um IS que incida sobre o que é prejudicial à saúde e ao meio ambiente, e, ao mesmo tempo, construir instrumento de subsídio cruzado para financiar políticas públicas, alternativas de desenvolvimento sustentável, e repor os gastos que esses produtos trazem à saúde, como é o caso de alimentos não saudáveis”.

Ele ponderou, no entanto, que há algumas fragilidades no modo como o IS está sendo desenhado pelo Legislativo. A frente parlamentar do agronegócio articula diretamente para que o novo imposto seja aprovado com alíquota diferenciada para produtos agropecuários e alimentos para consumo humano. Se aprovado como está, abre brechas para retirar agrotóxicos e ultraprocessados da lista de bens tributados pelo IS: “Aí complica, adeus seletividade de ultraprocessados, dependendo do que se definir como alimentos na lei complementar da cesta básica, que será aprovada mais pra frente”. 

Orair defende que, para administrar essa contradição, o ideal é garantir o IS para os produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, mas, no caso de alimentos, adotar uma prática de devolução – quando o Estado identifica grupos específicos que deixam de pagar ou recebem parte do imposto pago nos bens e serviços que consomem: “ É um modo de fazer chegar a diferença no bolso das pessoas, não só no  mercado e atacadista. Isso permitiria que a cesta básica fosse mais ampla”. 

É necessário considerar  classe, raça e gênero 

Tathiane Piscitelli, professora da FGV-SP e  especialista do direito tributário e financeiro, concorda que, se o objetivo da tributação mais pesada sobre os bens é reduzir  o consumo e recompor o caixa, a fim de custear, dentre outras possibilidades, as despesas de saúde que os mesmos geram, é inadequado elencar produtos agropecuários e para consumo alimentar como passíveis de alíquota diferenciada.

Para ela, a devolução  é uma boa opção, mas não pode ser a única medida. Deve ter alíquota favorecida ou zero sobre alimentos essenciais – como é a proposta da Cesta Básica Nacional com Alíquota Zero. No entanto, como não há uma definição de quais pessoas seriam beneficiadas, ela refletiu que é preciso pensar nos marcadores de gênero e raça/cor: “As pessoas mais pobres no Brasil são mulheres negras, prejudicadas pelos danos causados pelo consumo desses bens. Além de ter sua própria saúde comprometida, na economia do cuidado essas mulheres são as mais oneradas – as que cuidam de pessoas adoecidas”. 

Outro ponto sensível é o uso do IS como forma de compensar a vantagem competitiva da zona franca de Manaus. Piscitelli alerta para o desvirtuamento do imposto, neste caso: “Se há possibilidade de IS sobre qualquer produto da Zona Franca de Manaus, extrapola para bens produzidos lá, e que não são maléficos à saúde – como bicicletas. Essas empresas seriam oneradas por um instrumento que não é adequado para isso”, pontuou. 

Novas leis para novos problemas 

Já Denise Lucena, professora da UFC, acredita que é preciso, sobretudo, informar e conscientizar a sociedade, para garantir apoio popular à medida: “Refrigerantes e biscoitos são culturalmente associados aos dias de festa, nas casas e nas escolas brasileiras. O aumento no preço pode gerar reações inversas. Mas as respostas não estão na Constituição Federal de 1988, porque esse problema não existia. Se há um problema novo, precisamos de uma legislação nova”. 

Ela afirmou, ainda,  que a tributação é a última fase da política pública, e que não pode vir só – precisa vir com regulamentação e planos de ação. Defendeu a inclusão do critério ambiental no sistema tributário nacional, e um esforço para que o IS seja, de fato, concretizado – sem se tornar um  falso tributo verde ou um imposto previsto, mas sem regulamentação, como é o caso do imposto sobre grandes fortunas, aprovado em 1988, mas sem entrar em vigor ainda hoje.

Determinar o que faz mal à saúde é uma decisão técnica

Paula Johns, Diretora Executiva da ACT, trouxe a perspectiva da sociedade civil para a mesa. A ACT, em diálogo com outras organizações ligadas à defesa dos direitos e da justiça social,  defende a Cesta Básica Nacional com Alíquota Zero e a vinculação dos recursos arrecadados com o IS para o Sistema Único de Saúde – para financiar, além da estrutura e serviços de saúde, a produção de pesquisas, ações de vigilância em saúde e toda a complexidade do sistema, historicamente subfinanciado. 

Além disso, insistiu que não pode ter travas para o IS no texto constitucional, que é preciso tributar, além de álcool e tabaco, agrotóxicos e ultraprocessados, entendendo que fazer “doer no bolso” é uma ferramenta eficaz para induzir comportamento e reduzir consumo. “A definição dos produtos  que devem ser tributados não é uma prerrogativa do Legislativo, é uma decisão técnica, precisa ser definido pelo Ministério da Saúde, instituições de pesquisa, pelo Executivo. Não é um jogo político, decidir o que faz mal à saúde e o que faz bem”, declarou Johnson. 

A ACT compõe a campanha Reforma Tributária 3S: Solidária, Saudável e Sustentável, conheça. 

É preciso produzir evidências para subsidiar políticas públicas 

Roberto Iunes, economista sênior do Banco Mundial (BM), trouxe relatos de um trabalho desenvolvido pelo BM, sobre o impacto da tributação em produtos ultraprocessados. Os resultados são promissores, e os efeitos progressivos: além da melhoria direta no bem-estar dos indivíduos, há uma queda no gasto com saúde, além do aumento na qualidade  de vida das pessoas. 

“É verdade que o preço dos alimentos saudáveis já está muito alto, mas, no Brasil, o hábito alimentar ainda não mudou completamente, não temos o padrão alimentar ainda de países como EUA, que o consumo de ultraprocessados é muito excessivo. Mas temos que agir já, gerar evidências e providenciar dados para conseguir convencer os tomadores de decisão e argumentar com a sociedade”, argumentou Iunes. 

O evento foi mediado por Diogo Coutinho, pesquisador do GDPP e professor da Faculdade de Direito da USP. O debate foi o primeiro do ciclo Direito e Alimentação, que tem apoio do Global Center for Legal Innovation on Food Environments, do O’Neill Institute for National and Global Health Law (Georgetown University Law Center) e do Instituto Ibirapitanga.

A mesa foi transmitida pelo Youtube do GDPP, e está disponível

Texto por Hara Flaeschen